quarta-feira, 18 de março de 2015

NA ESTRADA

Sábado. A noite desliza na estrada molhada. Você me pede um cigarro. Eu o acendo e coloco-o em sua boca. Você diz que o melhor do cigarro é acendê-lo. Agradeço por você ter deixado a melhor parte pra mim. A fumaça parece clarear o interior do carro. Posso ver seus cabelos – agora mais brancos – mexendo ao vento que entra pelo vidro. Chega-nos também um barulho: parece um som produzido por um pássaro muito grande. E não é só impressão. O pássaro desconhecido pousa as garras sobre o limpador do para-brisa. Você se assusta e freia bruscamente. O ruído da freada assusta a ave. O cigarro voou pelo vidro. Mau presságio? Você não crê nessas coisas e volta a acelerar. Será que o hotel ainda está longe? Já sei: longe para você não existe; acelera ainda mais. Será que vai chover de novo? Esperar pra ver. Quer outro cigarro? Agora, não.
Um luminoso lá longe clareia o hotel tal como vi na foto da internet. Você parece querer sorrir. Eu fico contente e bato palmas. Você sempre me acha exagerado; volta a franzir a testa. Paramos. Descemos. Não há vagas, grita outro luminoso menor. Poxa! E agora? Você aponta para o carro. Entramos. Você volta a dirigir, percebo, com uma contida fúria. Quer mais um cigarro. Quer acender? Não quer. Procuro no celular outro hotel. Nenhum nas proximidades. Volta a chuviscar. Vamos voltar pra casa? Você não responde e acelera. Quer que eu dirija um pouco? Acelera ainda mais. Não é melhor voltarmos? Você emite um grito parecido ao do pássaro. Assusto-me, já esperando ver a ave pelo para-brisa novamente. Você solta um palavrão. Está bem, não falo mais nada. Você desacelera.
Aponto-lhe uma pequena casa de madeira, porta e janela abertas. Você sorri, parece ideal. Desço do carro segurando o revólver. Você, não; não acredita em azar. Você só se incomoda com o chuvisco. Adentramos a casa. Ela está vazia. Sim, você concorda comigo, parece que foi montada especialmente para nós. Guardo o revólver. Você também concorda que a noite no hotel seria enfadonha. Você quer mais um cigarro. Deixo que o acenda. Pego um pra mim também. Está mais calmo agora? Você apenas sorri. Um riso nervoso como suas mãos, que começam a tremer ao se dirigir ao porta-malas. Você pede ajuda. Você segura as mãos e eu, os pés do defunto. Deixamo-lo em posição sentada, abaixo da abertura interna da janela. Eu volto dirigindo. Você fuma sem parar.

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