segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

LOUCO DE PAU, LOUCO DE PEDRA


-No meio do caminho havia uma pedra.
-No meio do caminho havia um pau.
-Pau é pau, pedra é pedra. Mas eu prefiro misturar.
-É pau, é pedra, é o fim do caminho.
-Não restará pedra sobre pedra. Nem pau sobre pau.
-Com quantos paus se faz uma canoa?
-Não sei. Melhor fazê-la de pedra.
-Além do pica-pau, existe o pica-pedra?
-Ele quebraria o bico. Não picaria mais nada.
-Nem pau, nem pedra, nem o fim do caminho.
-Nem a canoa de pedra.
-Precisamos salvar a canoa de pau!
-Sim! É um perigo uma canoa furada!
-Hoje já fumei duas pedras.
-Mas jamais fumarás paus.
-Imagina uma tora de madeira...
-No baralho tem paus, mas não tem pedras.
-Precisamos criar um novo naipe urgentemente.
-Criar um novo baralho. De pau. Ou de pedra.
-Como na idade da pedra.
-Existiu a idade do pau?
-Não sei. Meu pau tem a mesma idade que eu.
-Só olhas para o próprio umbigo...
-Não. Só olho para o próprio pau.
-Já pensou se ele fosse petrificado?
-Eu ficaria milionário.
-Que nada! Ganharia só uns dez paus.
-Já é o bastante. Compraria pedras preciosas.
-Trocaria pau por pedra.
-E pedra por pau também.
-Você está me confundindo.
-É porque você não conhece os paus preciosos.
-Estou rindo por dentro.
-Por quê?
-Imaginando jogar rouba-monte com um baralho de pedra...
-Qual a graça?
-Imagina carregar aquele peso todo.
-É! Vergonha é roubar e não poder carregar.
-Por isso não roubo. Nem carrego.
-E eu nem jogo rouba-monte.
-Amanhã vou ao urologista.
-Problemas no pau?
-Não. Pedras no rim.
-Dê lembranças a ele.
-Ao rim?
-Ao médico.
-Tu o conheces?
-Sim. É um cara-de-pau.
-Mas é boa gente.
-Até amanhã.
-Não. Amanhã vou ao médico.
-Então, até depois de amanhã.
-Até lá!
-Olhe por onde anda!
-Claro! Nunca tropeço, seja em pedra, seja em pau.
-E não te esqueças de levar guarda-chuva.
-Tentarei lembrar.
-E manda um beijo pra tua tia.
-Será dado.
-Vou pra casa construir uma canoa de pedra.
-E eu um baralho de pau. Tchau

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O DIÁLOGO (OU: O PESSIMISMO É PROLIXO)


-Só vejo trevas... Por onde caminho, a escuridão me persegue... O céu muda de cor a cada passo meu... As nuvens brancas vão se tornando cinzas... As cinzas vão ficando pretas... As pretas derramam uma interminável tempestade sobre minha cabeça... Vivo ensopado de tristeza e solidão... Alguns me dizem para buscar forças na infância... E o que encontro é um menino cabisbaixo, que não quer brincar, que não tem amigos – nem imaginários... Aí, fico mais triste... Outros me aconselham a tentar enxergar um futuro melhor... Então, imagino um velho carrancudo e ranheta, a discutir e praguejar o tempo todo... Aí, fico mais triste ainda... Já me indicaram psicólogos, psiquiatras, terapias, religiões... Tentei tudo... Só encontrei gente amarga, que não se preocupa com os outros, que não tiram os olhos do próprio umbigo... Só queriam me criticar e depreciar... Não tinha uma palavra amiga, um gesto positivo, um abraço reconfortante... Bem, algumas até queriam se aproximar... Mas, com que interesse? Muito provavelmente estavam tentando se aproveitar da minha bondade... Ou só pensavam em sexo... Se queriam tocar em mim... Já sabe... Puro interesse físico, sem alma, sem amor... Por isso fujo das pessoas... São todas rancorosas e insensatas... Não têm a mínima abnegação... Só pensam em si próprias... Vivem egoisticamente... Nunca recebi um olhar benevolente... Se bem que... Bem, eu só olho pra baixo... Sabe, eu queria uma vida melhor para mim... Nem consigo comer, pensando nas pessoas que passam fome... Nem consigo dormir, pensando que a qualquer momento pode estourar a terceira guerra mundial... Acho que é isso... Eu sou muito bom... Só penso nos outros... E acabo me abandonando... Preciso viver mais pra mim... Quem sabe, assim, eu encontre um pouco de...
-A luz! Há luz! À luz!

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

MOMENTÁRIO


Queria fazer um diário descrevendo o que acontece a cada momento. Um “momentário”. Cada milésimo de segundo da vida retratado. Cada piscada, cada inspiração, cada movimento da língua, cada som que invade os ouvidos, cada arrepio. Cada passo e o que os pés pisaram naquele átimo de segundo. Cada gesto e seu significado. Cada pensamento e sua intenção, sua direção, sua divagação, sua determinação. E tudo ao mesmo tempo. Repetir, com palavras, todos os movimentos do corpo e da alma simultaneamente. Ininterruptamente, como um livro que não para e não parará de ser escrito – por um escritor multifacetado e completo; incompetente para poder aprender, íntegro para poder errar; desavergonhado para conseguir entender o que cada momento quer significar, honesto para saber descrevê-lo com exatidão. Um livro sempre aberto (já que em eterno movimento) e repleto de possibilidades de encerramento. Um livro com começo, tentando adivinhar o primeiro instante ocorrido. Um livro com meio, por onde desfilem o mínimo, o minúsculo e o microscópico. Um livro sem fim e com várias finitudes. Um “momentário” que talvez ninguém leia, ninguém veja, ninguém aprecie, ninguém critique, ninguém ame, ninguém xingue, mas com a certeza de que foi minuciosamente vivido.