sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

EM BRASÍLIA, DEZENOVE HORAS

rápido rápido rápido a carga tem que desembarcar antes das quinze horas o menino tem que estar na escola antes das quatro não esquecer de visitar o sogro no hospital tem churrasco na casa do Carlos no domingo vamos vamos vamos nasceu a filha da irmã da Adelaide conta de luz vai subir 23,4% em média no país daqui duas semanas tem show da Maria Bethânia corre corre corre ontem choveu o dia todo mas a crise da água ainda continua Marisa quer assistir ao jogo de vôlei hoje à noite o processo contra a firma finalmente foi arquivado pagar a conta de luz e a de telefone na segunda-feira visitar a mãe na casa de repouso vai vai vai tem que mandar arrumar o laptop da Licinha comprar ração e biscoitos para os cachorros sintomas de recessão têm piora geral o televisor do quarto do Edinho não está funcionando rápido rápido rápido o jardineiro mandou avisar que não vem esta semana comprar o CD do Metallica para a Dani quinta-feira tem consulta com a psiquiatra vamos vamos vamos ligar para o dentista antes das dezessete horas ainda não arrumaram o ar condicionado do quinto andar buscar o livro do Valter Hugo Mãe que a Leninha encomendou corre corre corre os motoristas de ônibus entrarão em greve na terça-feira Lúcio sofreu um acidente de carro mas não foi nada grave vamos marcar aquele cruzeiro só pra novembro recebemos o convite de casamento de Salomão e Diana vai vai vai depositar cento e vinte e cinco reais na conta do advogado levar a tia Sandra para tirar novo RG cancelar o pedido da loja de material de construção pedir para o Ivan o telefone da Luzia rápido rápido rápido levar as calças novas para a costureira fazer a barra a faxineira está pedindo vinte reais de aumento procurador-geral afirma que sua casa foi arrombada e invadida vai estrear a nova novela das nove com a Fernanda Montenegro vamos vamos vamos já são duas e vinte e a carga ainda não desembarcou a Sueli desmarcou a reunião de sexta-feira comprar os remédios da mãe antes do dia dezenove corre corre corre quarta-feira estreia o filme que o Juninho quer ver chegou a lista dos funcionários demitidos neste mês obras justificam rombo nas contas vai vai vai

UNICÓRNIO

Naquele vale vive um unicórnio. Os meninos evitam o vale a qualquer custo. Os adultos contam histórias terríveis sobre aquele ser. Que come carne humana. Que pisoteia os miolos das pessoas até desaparecerem. Que seu chifre emitem raios que dão choque de 550 volts. Que sua crina se transforma em asas e ele voa dali para qualquer lugar do mundo. Que seu cocô tem o mesmo poder destrutivo de uma bomba atômica.
Geraldinho nunca acreditou nestas balelas. Tinha medo do bicho, sim, mas medo de que ele o estranhasse se invadisse seu território. Então, todos os dias, em diferentes horários, ficava pelo menos meia hora espreitando o animal entre as pedras que circundavam o vale, com todo o cuidado possível para não ser percebido. Não chamava os amigos para esta aventura, pois tinha certeza que alguns deles – ou todos – dariam com a língua nos dentes e os adultos proibiriam esta nova distração.
Se bem que esta distração já estava monótona demais para o tamanho da curiosidade infantil. Geraldinho só via o bicho pastando e dormindo. Dormindo e pastando. Só uma vez o viu bebendo água. Havia chovido e o Uninho – como o menino o apelidara mentalmente – se deliciou com as poças d´água. De resto, o bicho só pastava e dormia. Dormia e pastava. Nenhum raio saía de seu chifre. Nenhuma cena de antropofagia. Sua crina era só crina mesmo. E cocô parece que ele não fazia. Nem xixi.
Mas não era possível! O animal tinha que ter algum poder especial! Quem sabe se, provocado, ele teria alguma reação e mostraria sua verdadeira face! Geraldinho resolveu atirar uma pequena pedra bem perto dele. Ele, deitado, levantou a cabeça, olhou para a pedra e voltou a dormir. O menino tacou outra pedra e a reação foi a mesma. Geraldinho não queria acertá-lo, mas não via outra maneira de atiçar o bicho. “Vou mirar na bunda dele; acho que ali dói menos”. E lá se foi a pedra. Uninho só olhou para a bunda e voltou a dormir.
Quem não dormiu naquela noite foi Geraldinho. “Ele é muito calmo! Eu tinha razão! É tudo invenção desta gente! Talvez, se ele deparar comigo, tenha outra reação. Mas... e se acontecer alguma coisa? Meu pai jamais vai me perdoar... E seu for à noite? Nunca vi o Uninho à noite... E se eu for agora?”
E foi. Chegou às pedras e... surpresa! Uninho não estava lá! “Será que não estou enxergando direito? Mas o luar está claro! Eu veria o Uninho, sim... Vou esperar...” E esperou até amanhecer, quando viu um homem entrando no vale. “Meu Deus! Papai! E se o Uninho pegar ele? Vou até lá!”
Antes que chegasse à metade do caminho, seu pai já havia se transformado em unicórnio. E Geraldinho teve a certeza de que poderia brincar com ele à vontade.

VOLTA

O lábaro que ostentas pode estar rasgado. Cuidado! Vai com fé, mas vai com calma! Sem sede ao pote, sem cuspir no prato em que comeste, sem ferir com ferro quem será ferido de qualquer maneira. Sem pleonasmos, mas com convicção. Vai! E volta sorridente, por favor. Com liberdade. Com amor, com carinho. Com açúcar, com afeto. Com vontade de união, apesar de todos os olhos apontarem solidão. Com o teu pão de cada dia, com o teu ganha-pão. Com o teu cotidiano de aventuras, com tuas aventuras cotidianas. Com tua reza, amém! Com teu ser e teu não ter. Com teus badulaques, com tuas coisinhas, com teus apetrechos. Com tuas manhas, tuas artimanhas. Com tudo de teu. Com teu coração quase ateu. Vai! E volta com um grito abrindo caminho, abrindo caminhos, rompendo fronteiras, derrubando barreiras. Volta manso e imenso, volta menos cansado, volta ainda mais ousado. Volta como quiseres voltar, mas volta!

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

ASSIM

Foi assim: a noite veio baixando até cair no quintal, transformando em sombras confusas tudo o que aparecia pela frente. O poço não era mais o poço, era a sombra complicada do poço. O balanço pendurado na árvore não era mais o balanço, era uma sombra que ia e vinha atabalhoadamente. A árvore era um simples buquê que se movia no chão de pedras claras. Os coelhos saltitando na grama eram simples mãos fazendo o sinal de vitória. Os ferros da cerca se multiplicaram diagonalmente, dando à casa uma mais acentuada aparência de gaiola.
Saiu do vitrô e deitou. Com a luz acesa. As mesmas sombras perambulavam pelo teto, em volta da lâmpada. O poço complicado, o balanço atabalhoado, o buquê sobre as pedras, os coelhos-mão, a gaiola. Outra gaiola dentro da gaiola dentro de mais uma gaiola. E nenhuma possibilidade de pássaro. Muito menos de asas. Apagou a luz. Fechou os olhos.
As sombras desceram, pairavam à altura de seus olhos fechados, feito luzes. O poço flutuava, derramando sua água; o balanço circungirava; o buquê levantava-se das pedras; os coelhos-mão agora tinham cinco dedos... A gaiola... Só a gaiola continuava ali inteira, com seus ferros já entrecruzados, tornando impossível a entrada ou saída de qualquer fiapo de pena... Levantou. Foi ao quintal.
Ali havia a lua. Uma liberta lua.

LAPSOS

Lapsos de memória frequentes levaram Jair a procurar um médico. Depois de cinco remarcações da consulta, ele se lembrou de ir ao consultório.
Na sala de espera, um vaso enorme esparramava uma planta desconhecida para ele.
O médico o chama. Já esquecera a planta. O doutor parecia nervoso. Tinha um tique na boca. Jair ficou incomodado. Se nada valesse a pena, pelo menos a secretária era gostosa. Jair observara suas pernas por debaixo da mesa. Mas já não se lembrava delas.
O médico tinha dificuldades em falar. “O problema é mais grave do que imaginei”, pensou Jair. Antes que o doutor terminasse a primeira frase, o paciente levantou-se da cadeira almofadada e agradeceu a atenção do profissional, saindo pela porta entreaberta. Lembrou-se da secretária e de suas pernas. Mas não tinha mais razões para ficar ali.
Chegou à porta do elevador. Não lembrava quais das setas devia apertar. Já não lembrava também o que tinha vindo fazer naquele prédio. Resolver ir pelas escadas. Treze andares.
Ao chegar à porta do prédio, um homem lhe perguntou pela localização de uma rua. “Não lembro”, respondeu. E foi em frente. Não lembrava também que condução tomar para ir para casa. Aliás, nem sabia se queria ir para casa. Pensou em procurar um médico. Parou num bar e pediu uma cerveja. O balconista o olhava desconfiado. “Vai comer alguma coisa?” Não, ele não sabia se queria comer. Até tinha fome. Mas não lembrava o nome do salgado na vitrine que lhe apetecia. Não queria passar vergonha; disse simplesmente “não”.
Acabou a cerveja e decidiu caminhar. “A pé não me perco”. Parou numa praça e perguntou-se porque estava meio tonto. Sentou-se no único banco ali. Já não lembrava que ia caminhar. Começou a cantarolar uma canção antiga. Não chegou ao terceiro verso. Ficou olhando os pombos e as pessoas. Comparava-os. Mas ao chegar à segunda frase do raciocínio, já tinha esquecido a relação que estabelecera na primeira. Milho. Hu-milho. Só isso vinha à sua mente.
Levantou-se. Olhou para o céu e acompanhou uma nuvem com o olhar até ela se juntar a outra. Parecia que ia chover. Desde manhã parecia que ia chover. E ele, claro, esqueceu o guarda-chuva. Onde?
Passou um rapaz vendendo capa de chuva. “É só dez! É só dez!”. Jair pegou uma capa, deu uma nota de cem e retomou a caminhada sem esperar pelo troco. Chegou à porta do prédio do consultório médico. O homem que procurava por uma rua ainda estava lá, perguntando a todos que passavam. Jair já não se lembrava do homem. E, interpelado, de novo respondeu “não lembro”.
Jair olhou para cima, mirando o prédio de ponta a ponta. Parecia-lhe familiar. Decidiu entrar. Antes que chegasse à porta do elevador, o médico vinha ao seu encontro. Ia dizer algo, mas Jair o interrompeu. “Não lembro!” E entrou no elevador. Não sabia que número apertar. Ficaria ali até que entrasse outra pessoa e apertasse algum botão. Entrou uma mulher muito elegante e bonita. “Boa tarde!”, disse ela chacoalhando a sombrinha e apertando o número sete. “Não lembro!”.
-Não lembra o quê?
-Não lembro!
-Como assim?
-Como posso dizer o que não lembro se não me lembro?
-Eu só disse boa tarde.
-Sim, mas não lembro o que devo dizer depois disto.
-Oras. Boa tarde!
-Novamente? Desculpe-me, mas não lembro...
Chegou o sétimo andar e a mulher desceu sem se despedir. Não saberia como explicar ao desconhecido que ele apenas deveria dizer “tchau”. Jair ficou olhando para o chão do elevador, observando os respingos de sua capa e os da sombrinha da mulher se fundir. Formavam um desenho. Mas que desenho era aquele? Um cavalo? Um castelo? Um homem? Não sabia...
Entrou um homem no elevador. Vestia terno preto e cartola. Jair olhava fixamente para o objeto que o homem trazia à cabeça. Queria buscar dentro de sua mente onde já tinha vista algo muito semelhante. “No circo? No teatro? Na festa do meu casamento? Eu sou casado? Com quem? Onde está minha mulher que não me ajuda? Aliás, eu tenho parentes? Onde moram? Onde estão?” O homem ia saindo do elevador quando Jair arrancou-lhe a cartola.
-O que se passa, meu senhor?
-Eu preciso disto! Eu preciso disto!
-Eu poderia lhe presentear, mas preciso dela na cerimônia de que vou participar em minutos...
-Isto é a chave de tudo! De tudo!
-Não o entendo, meu senhor. Poderia devolver a minha cartola?
-Cartola?... Não me lembro...
E devolveu o objeto ao seu dono. O homem saiu achando tudo muito estranho, mas sem censurar Jair, que agora se obstinava pela palavra ‘cerimônia’. “O que é isso mesmo?” Decidiu sair do elevador para tentar achar alguma pista. Três andares acima do do homem da cartola. Encontrou um salão enorme com muitos bebês; a maioria deles engatinhando. Jair juntou-se a eles. Uma das babás não notadas por ele ligou para a portaria do prédio e chamou por segurança. Em segundos, chegaram dois homens altos, vestidos de preto, com rádio na cintura fazendo muito barulho. Enquanto um levantava Jair, o outro lhe perguntou se estava tudo bem. “Não lembro!”
Um dos homens acompanhou Jair até a portaria do prédio. Perguntou-lhe se precisava de alguma coisa. “Eu preciso saber se sou casado...” O segurança ficou surpreso.
-O senhor tem documentos?
-Não lembro...
-Vejo uma carteira no seu bolso... Quer que eu verifique?
Jair confiou-lhe a carteira.
-Pelo que leio aqui, o senhor é solteiro...
-Solteiro? Então não tive festa de casamento? Não usei cartola?
-Como?
Percebendo o confuso estado do rapaz, o segurança contemporizou:
-O senhor está precisando de ajuda? Sabe como chegar à sua casa?
-Não lembro se tenho casa...
-Você tem aqui uma conta de luz... Rua dos Pombos, 237. Isto lhe diz alguma coisa?
-Pombos... Pombos saindo da cartola... Aquele mágico numa cerimônia... Que cerimônia mesmo?
O segurança estava por perder a paciência, mas resistiu, pois percebeu que não se tratava de uma má pessoa e, sim, de alguém no mínimo confuso.
-Se o senhor quiser posso pedir permissão à chefia para acompanhá-lo até este endereço. Não é muito longe daqui.
-Permissão... Chefia... Endereço... Você está me deixando confuso. Eu vou embora!
O segurança chegou a pensar em não deixá-lo ir, mas não poderia se responsabilizar por alguém que nem conhecia. Devolveu-lhe a carteira e mostrou a porta da saída. Jair se foi.
O homem que procurava uma rua parou Jair novamente. “Por favor, senhor, pode me dizer onde fica a Rua dos Pombos?”
-Eu me lembro! Eu me lembro! Pombos saindo da cartola. Foi contratado um mágico para animar a cerimônia de casamento de minha irmã mais velha...
-E a rua?
-Rua? Não foi na rua! O senhor está querendo me confundir! Foi num salão... No salão da igreja...
-Sim! É na igreja mesmo que quero ir! O senhor sabe onde fica?
-Vou para lá agora! Acho que a festa ainda não acabou!
-Posso acompanhá-lo? Preciso chegar lá antes do anoitecer...
-Não se preocupe! A festa vai até o sol raiar!
-Festa? Mas eu vou ao velório do Padre Inácio!
-O padre morreu? Quem vai casar minha irmã? Sem cerimônia, não haverá mágico, nem pombo, nem cartola...
-Oras! Não vou mais com você! Você é louco!
-Louco? Não lembro...
Jair pôs-se a caminhar novamente, em direção contrária à que foi outrora. Já não chovia; tirou a capa de chuva e amarrou-a a um poste. Não se lembrava porque estava vestindo aquilo. Pegou a carteira do bolso e remexeu os mesmos papeis que o segurança tinha lido há pouco. “Jair de Souza da Silva... Sim, sou eu! Rua dos Pombos, 237... Não me lembro... Estado civil: solteiro... Sim, é minha irmã quem vai casar, não eu... Oitenta e cinco reais e quarenta e sete centavos... Não lembro... Comprovante de votação... Que votação? Nacionalidade: brasileira. Número do hidrômetro. Natural de Mirassol-SP. Conta corrente número 456.367-2. Filiação: Maria Eugênia da Silva e José Ferreira da Silva. Agora me lembro! Papai morreu à véspera do casamento! Estava dando uma carona pro Padre Inácio... E mamãe? Onde está mamãe? Talvez aquele homem saiba...”
Jair voltou mais uma vez à porta do edifício do médico. Lá estava o homem procurando a Rua dos Pombos. Antes que ele dissesse qualquer coisa, Jair mostra-lhe o RG.
-Você conhece esta mulher?
-Mulher? Mas é um homem! É você mesmo!
-Não! Aqui! Maria Eugênia da Silva...
-Não conheço, não. Só conheço o Padre Inácio... Vim para o velório dele...
-E o velório dele é nesta Rua dos Pombos, não é mesmo?
-Isso!
-Então vou ajudar você...
Ficaram os dois perguntando a todos os transeuntes onde ficava a Rua dos Pombos. Por anos. Os seguranças do edifício tentavam ajudá-los a se dirigir a tão procurado endereço, mas desistiam quando eles começavam a falar de um certo casamento e um tal velório.

O CRÂNIO

Labaredas perseguem um crânio que foge da luz. E à velocidade da luz. Faíscas entram-lhe pelas cavidades que já foram olhos, boca, nariz. Queimam-lhe o vazio antes ocupado pelo cérebro. O crânio, de tantas faíscas, torna-se uma lâmpada. Acesa. O crânio finge-se símbolo de boa ideia. E não há ideias; sequer más ideias. Há um vazio cercado de osso queimando que voa por um espaço multicolorido, que também se finge. De mar, de céu, de terra, de plumagem, de pelos, de quadros pintados por ilustres ou anônimos. O crânio para por um momento. As labaredas ultrapassam-no. Parecem perder-se no multicolorido, misturando-se a ele.
Agora o crânio finge observar o dissimulado espaço colorido. Finge – não há olhos.
As faíscas já não o iluminam mais. Agora, finge-se de boa ideia apagada. Pensa, finge pensar que poderá encontrar conforto no espaço. O conforto para um crânio é um corpo onde repousar - também finge pensar. Talvez, voasse por ali um esqueleto sem cabeça, necessitado de um crânio que finge pensar. Ou simplesmente de um crânio para ser completo.
O crânio volta a se mover. À velocidade da chama de uma vela. Sente, finge sentir tocar-lhe o cocuruto penas suaves, grama arrancada com restos de terra, algodão usado em feridas dos que ainda vivem. Percebe, finge perceber que observar em menor velocidade é mais colorido. E encontra ioiôs, conjuntos de canetas hidrocoloridas, caixas de lápis de cor, latas de lixo próprias para reciclagem, tecidos estampados de rosas, margaridas, girassóis. Tenta, finge tentar montar um corpo – um esqueleto – com estes objetos.
Todo o colorido do espaço, repentinamente, desaparece.
Agora, o crânio finge não precisar de um corpo. Mesmo porque não tem mais os objetos para a montagem. Quer, finge querer ouvir música – afinal, há as cavidades que já foram ouvidos. Uma voz de uma cantora negra, norte-americana, acompanhada por um guitarrista acéfalo, à frente de um leão gigante, que se diverte com a cabeça de um palhaço amontoada sobre livros. O crânio quer achar um tesouro. Pelo menos uma moeda gigante como o leão. E depois, subir uma escada suja e chegar à voz da cantora novamente. O crânio finge querer fingir desejar.
E o multicolorido reaparece. Desenha no espaço marrom nádegas e bocas lambuzadas de azeite. O crânio pressente, finge pressentir que está sendo vigiado. Por corpos – inteiros: osso e carne – masculinos e femininos. Alguns, armados de martelo. Há ânsia. Uma dissimulada ânsia. Uma inventada vontade de amar. Nos corpos, não no crânio. E ele se finge voyeur.
Finge disfarçar-se de corpo inteiro, para também (fingir) vigiar. O disfarce, porém, não restou perfeito. A cabeça é canina, num corpo humano. E voltam as margaridas, as rosas, os girassóis. Não mais estampados. Inteiramente presentes. Surgem pratos pintados à mão que se assemelham a discos voadores. Quebráveis óvnis encaracolando-se, rocambolescamente, e espatifando-se contra a parede de prédios sisudos.
O crânio finge fugir. Querer fugir. Para. Esconde a canina cabeça entre os restos da barriga recém-fingida. Um navio passa sorrateiramente ao seu lado. Uma mão enorme achata-lhe o resto do corpo-disfarce. E não há mais como disfarçar. Nem fingir disfarçar.
O crânio sente-se apenas tutano. Um creme. De folhas verdes. De queijo. A lambuzar – ou fingir lambuzar – novas nádegas. Inteiras. Gelatinosas. Firmes. Bonitas. Sensuais. Gratas por serem lambuzadas. Satisfeitas. Insatisfeitas, pois querem mais. Outra mão surge. Fálica. Para acabar com a brincadeira. Ou começar outra.
O crânio se extasia. Finge ter dentro da cavidade da boca uma outra boca. De tigre. Com uma extensa língua a surrar o ar. Das cavidades dos olhos, surgem lágrimas negras. Um quase-petróleo. Combustível para gritar. E finge gritar. E finge sentir calor. Finge ser mulher. Finge tomar sorvete enquanto afaga um cão. Finge ter outro corpo para tomar banho. De calda de sorvete. Finge mais outro corpo – de golfinho, a mordiscar uma pétala de rosa.
De tanto fingir ter corpos, o crânio se transforma em um ovo. E finge preocupar-se. Cadê as cavidades? Ora!, a casca do ovo se quebra facilmente. Têm-se infinitas possibilidades de cavidades. Fácil. Como mergulhar dormindo e acordar desembocando no corpo de um pássaro enorme.
O crânio explode. E fim. Fim amarelado. Inclusive do espaço multicolorido.

O HOROSCOPISTA CHAPADO

Júpiter vai se alinhar com outro planeta cujo nome não me lembro. Vai ser bom para Áries – ou outro signo qualquer – fazer aquela tão sonhada viagem que só não faz porque não quer.
Marte vai cruzar a linha do... Que linha mesmo? Sei lá, mas Marte vai cruzar uma linha aí e aí será bom para Escorpião – e todos os outros signos – colocar em prática aquele velho sonho que não colocou até agora porque não quis.
A Lua vai estar em Libra – ou Sagitário? ou Peixes? – e, assim, qualquer signo vai poder transformar sua vida. Mas lembre-se: transformação em vampiro, só à noite; transformação em lobisomem só na Lua Cheia.
O Sol passará por Saturno – ou Vênus? ou Capricórnio? – deixando o terreno livre para os doze signos... fazerem o que mesmo? Bem, o importante é não se deixar levar pela maré alta ou baixa, qualquer maré, se é que tem mar onde você mora...
A vida vai correr mansa para os seis primeiros signos a partir do próximo dia dezessete. Para os outros seis, também. Mas não comemore desde já. Lembre-se que macaco que muito pula com ferro será ferido.
O rumo das coisas vai mudar para os que têm ascendente em Aquário, Leão e Virgem. E, por falar em mudança, alguém viu onde deixei meu copo de uísque? No segundo semestre.
Quem nasceu sob o signo de touro talvez a linha em Mercúrio no último bimestre importante na maré do ascendente em Xangô na linha da vida que vai cruzar no quarto crescente do amor mais encantado na terceira dimensão de Jesus Cristo eparrê! que está tudo embaralhado e amarrado e toda visão turva se desvanecerá se houver fé no criador na criatura na criação na criança na criadagem na viadagem tá boa santa? e hoje ficamos por aqui obrigado pela atenção dispensada amanhã os planetas vão mudar de rotação cadê meu uísque no alinhamento da dispersão do sol e da chuva passando pela lua em Urano em setembro do próximo milênio minhas mãos estão formigando viva Iemanjá o copo vai cair na constelação do primeiro dia de Oxóssi e aí boas perspectivas de viagem na segunda lua de Câncer tudo vai ficando escu...

O PIANISTA

Ao cair da tarde, um piano cai do céu na Avenida Paulista. Cai como um gato – sobre os quatro pés. Um homem de fraque preto e asas brancas, com uma cadeira aveludada à mão esquerda, voa de um prédio abaixo e para em frente ao piano. Ajeita a cadeira, senta-se e põe-se a tocar. Música Popular Brasileira.
Os carros, que até então desviavam do piano, têm que parar, pois os transeuntes invadem a passagem para ouvir as músicas.
Entre um samba e outro, pousa sobre o piano uma bailarina. Com um vestido rosa com rosas vermelhas estampadas, ela chama o público à dança.
Algumas pessoas mais extrovertidas se entregam ao convite. Outras olham desconfiadas, mas cantam e aplaudem. Surge, também do céu, um par para a bailarina. Um lindo rapaz de terno branco. Cumprimenta a moça beijando-lhe a mão e começam a dançar.
E a Paulista se torna um imenso salão. Casais – cujos pares nem se conheciam – evoluem em passos para lá e para cá, mesmo sem saber dançar; mesmo sem conhecer a canção.
O pianista começa a sobrevoar o recém-criado salão e seus casais dançantes. Mas o som não para. O som parece também vir do céu. E não é só mais piano. Tem cavaquinho, tem guitarra, tem bateria, tem violoncelo, tem reco-reco. Tem até triângulo e zabumba! E o som vai tomando as travessas da avenida e acaba chegando a todos os bairros. É uma incontável multidão que dança sorridente. Trabalho, estudo, afazeres domésticos, passeios – tudo é deixado de lado. Neste momento, dançar é a única necessidade dos cidadãos.
O pianista, sempre voando, entra pela janela de seu apartamento, na Rua Bela Cintra. Deita em sua cama. Pode voltar a dormir tranquilo. O ruído de buzinas e sirenes já passou.

TEMERENCIANO

Pássaros. O céu se move para que fiquem parados; arranha o topo dos edifícios; acaba ficando de cabeça pra baixo.
A terra – marrom como nunca – a terra lá em cima e as pessoas pisam as nuvens. Veem a chuva de perto, de baixo pra cima.
É feio o asfalto visto de baixo. Um cinza mais perigoso do que o das nuvens chuvosas.
Temerenciano joga milho nas nuvens, tentando atrair os pássaros.
-Se eles se moverem, a terra volta ao seu lugar.
Agora chove pipoca sobre o asfalto.
Os olhos de Temerenciano se abrem. O banco da praça continua em frente ao jardim. As flores continuam no jardim.
Só o cinza do asfalto ainda incomoda.

ÚLTIMAS

Serafim morreu. Sua esposa Júlia, seus dois filhos, Mário e Fernanda, e Vanda, a empregada da família, velavam o corpo. Vanda cuidava para que as velas não se apagassem, as flores não murchassem e não faltasse café aos tão poucos presentes. Júlia não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Começou a chorar quando colocaram o corpo ali e não parou mais. Mário e Fernanda, jovens pouco acima dos vinte anos, normalmente já não se falavam; naquela situação, então, o silêncio era imperativo – era quase uma ordem do falecido.
Aproveitando que Vanda teve que mexer no interior do caixão para rearranjar uma flor que o vento derrubara, Serafim ergueu-se e sentou-se. Tirou os chumaços de algodão do nariz e pôs-se a falar.
-Fiquem tranquilos! Eu estou morto, sim. Esta é a última vez que vou perturbar vocês. Não queria ir-me daqui sem lhes dizer algumas palavrinhas.
Todos se espantaram. Júlia, arregalando os olhos, parou de soluçar. Mário e Fernanda entreolharam-se aflitos e permaneceram calados.
-Não quero deixá-los sem esclarecer algumas pendências. Não quero que passem o resto da vida imaginando coisas a meu respeito que talvez não condigam com a realidade...
O morto faz uma pausa, tira o algodão de um dos ouvidos e continua.
-Mário!
O rapaz se levanta num salto.
-Então eu sou um velho imprestável, não é mesmo? Mas e minha conta-corrente? Ela é muito útil, não?
Mário olha para o chão, envergonhado. O velho grita o nome da filha, que se levanta sem sobressalto.
-É verdade, Fernanda, que eu deveria me envergonhar por ser tão ranzinza, só por querer ver você ser alguém na vida?
A moça torce o nariz e senta-se novamente. O morto chama pelo nome da esposa.
-Bem, Júlia, agora você não precisa mais se constranger para me trair de todas as maneiras possíveis. Fique à vontade!
Júlia volta a chorar. Serafim ia deitando-se novamente, mas detém-se.
-Ah! Anotem para a posteridade as minhas últimas palavras: algodão no nariz é um pé no saco!
Finalmente deita-se e cruza as mãos, como bem cabe a um falecido. Júlia e seus filhos quebram o silêncio, gritando em uníssono para Vanda:
-Filha da puta!