sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

ANJO


Desde que um anjo pegou minha mão, eu fiquei assim, mais leve. Era uma senhora de mais de setenta anos, pegando restos de alimento no lixo do prédio da prefeitura. Dizia que, mesmo azeda, a comida era muito boa. E se punha a imaginar um prato fumegante, com um apetitoso cheiro de ervas finas. Depois que eu lhe disse “bom dia”, ela passou a me contar histórias de sua infância e juventude. Que naquele tempo é que era bom! Havia fartura em todas as mesas e todos, todos mesmo, podiam se servir à vontade. Havia música e dança até de madrugada e todos, todos mesmo, dançavam com respeito. E quem queria uma carícia mais ousada se retirava da festa e se escondia no matagal. Ela ficou em dúvida se gostava mais da festa ou do matagal. Namorador, um anjo namorador. Que se encantava com as primeiras luzes de mercúrio. Que achava lindos aqueles pequenos pontos luminosos substituindo o brilho das estrelas na escuridão da noite. Mas que atrapalhavam o namoro encostado ao poste ou no banco da praça. “Ah! Namorar era muito bom! Hoje, quem abraçaria uma velha fedida como eu? Que arrota lixo azedo e se esconde nos becos para fazer suas necessidades... Envelhecer é isso? A vida sem abraços é muito triste, menino! Comer lixo é suportável...” Olhei-a nos olhos; ela lembrava minha mãe. Lembraria a mãe de qualquer pessoa. “Posso te dar um abraço, com todo respeito?” Ela riu. “Você vai sair daqui com catinga, menino. Faz isso, não...” Aproximei-me dela e dei-lhe o abraço. Ela me apertou forte. Realmente, parecia precisar mais de um abraço do que de comida. Quando nos desvencilhamos, ela pegou minha mão. “Agora vá cuidar dos seus afazeres, menino! Não perca mais tempo com esta velha louca, não... A vida passa depressa, sabe? Reze e trabalhe muito para não chegar nesta situação... Namorei tanto que me esqueci de rezar, de trabalhar... Mas a vida é assim... Se eu estivesse dentro de minha casa ou num asilo, não teria ganhado este abraço. Vai com Deus!” E eu fui. Com Deus, certamente, mas principalmente com as marcas do abraço de um anjo em meu corpo. Leve.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

TÁ ME TIRANDO?


Cara-pálida tá me tirando? Aqui é Cacique! Com C maiúsculo! Pensa o quê? Que aqui é palerma? Índio aqui estudou. Estudou muito. Autodidata! Li mais livros do que sua família inteira junta! Foi-se o tempo, aliás, muito, mas muito tempo mesmo, que índio trocava sua dignidade por espelhinho. Agora você vem me oferecer um celular? Tá me tirando de idiota? Pra que eu quero falar com alguém do outro lado do mundo, se não conheço ninguém lá? Ah, ele também tira fotos? Índio não precisa ver fotografia; índio vê tudo ao natural. Faz chamada por vídeo? Índio conversa olho no olho. Tem lanterna? Índio só caça de dia; à noite a gente aproveita a luz do luar. Dá acesso às redes sociais? Cara-pálida, socializar é estar junto, de mão dada, dançando festivamente ou guerreando, se necessário. Sabe o que você faz com esse aparelhinho? Troca por comida e ajuda a matar a fome do seu povo. Esse povo, sim, está trocando sua vida por espelhinhos. E espelhinhos quebrados, que não servem para nada. Sabe o que você pode fazer também com este celular? Liga a câmera dele. Olhe-se bem nos seus próprios olhos e se pergunte: o que estou fazendo de minha vida? Não pare de olhar até achar uma resposta humanamente positiva. E me deixe em paz. Tá me tirando?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

PRONUNCIAMENTO


-Atenção para o toque de cinco segundos para o pronunciamento de Vossa Excelência, o Presidente da República das Bananas Podres.
-Oito... Sete... Seis... Cinco... Quatro... Três... Dois... Um!
-Bananeiros e bananeiras, boa noite! É com grata sastifação que venho lhis comunicar qui, a partir de amanhã, imtrepe... impreve... im-pre-te-ri-vel-men-te, ...xi! O teleprompi apagou! Que merda é essa? Vê isso aí, porra! (...) Ah, voltou! Então, a partir de amanhã, imtrepe... impreve... (Caramba! Já falei pra não colocar esta porcaria de palavra nos discurso!) Im-pre-te-ri-vel-men-te, todos os cidadãos deverão trabalhar 18 horas por dia, com o direito de cinco minutos para o almoço. Parece muito? Não é não! Deixei cinco minutos para dar tempo de escovar os dentes. Todos entenderão que esta medida foi estreitamente necessária para o crescimento do país e a valorização do trabalho pelas famílias cristãs. Devo acrescentar que tal medida abrange todas as pessoas acima de sete anos. E só estão dispensadas de cumpri-la aqueles que já bateram as botas, como se diz lá na minha cidade. Pra quem não sabe, bater as botas é o mesmo que morrer, fechar o paletó, encomendar a alma, escafeder-se. Com a prena certeza de que me fiz craro e todos apoiarão mais esta medida, afinal, é para o bem de todos, me despeço. Bananeiros e bananeiras, boa noite!

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

HPV

Apareceu algo estranho na glande do rei. Algo como um caroço, um pequenino tumor. O urologista real foi chamado e, em segundos, deu o diagnóstico:
-Não é nada grave, Majestade. É um simples HPV. Desaparecerá com algumas compressas de água morna. Mas cuide bem, Majestade! Estas coisas simples podem se transformar em doenças malignas...
Um enfermeiro palaciano foi encarregado de fazer tais compressas. O rapaz, ao saber que veria e tocaria parte tão íntima do rei, ficou apreensivo, mas foi cumprir o seu dever. Após ajudar a majestade a tirar tanta roupa suntuosa de cima do minúsculo pênis real, ele não conseguiu conter o riso. “Tem menos da metade do tamanho do meu”, pensou e, involuntariamente, já gargalhava, como se a anatomia respeitasse títulos de nobreza. O rei, furioso com tal audácia, imediatamente ordenou:
-Soldados!  Cortem-lhe a cabeça! Agora!
O capitão tentou contemporizar:
-Majestade! Não estás sendo cruel por demais?
-Não, não estou! Cortem-lhe a cabeça! Do pênis! Aliás, cortem-lhe o pênis inteiro!
A ordem foi cumprida. O enfermeiro, envergonhado, suicidou-se. E o caroço da glande do rei, esquecido propositalmente por ele mesmo, cresceu absurdamente e tornou-se um maligno câncer. O pênis real teve que ser amputado. No mesmo dia, o urologista real foi condenado à morte.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

SURUBA


–Teus lábios me dão um tesão danado! –Tuas coxas são demais! –Uau!!! Você raspou! –Mas eu já comi tua bunda agora mesmo... –(Sussurrando) Você me deixa maluco... –Vamos todos juntos? Agora! –Desliga essa câmera, porra! –O dólar tá subindo mais do que meu pau... –A gente podia variar... Sei lá... Brincar de roda... –“Sexo é uma selva de epiléticos”. –Você e suas (ex)citações fora de hora. –Caiu mais um ministro... Caiu bem em cima da cabeça do meu pau! (risada) –A coisa pública é excitante... –Queria transar dentro de um cofre... –Você já transou em cabine telefônica? –(Gemendo) Esta cueca é de matar! –Eu queria mesmo era foder com a vida do povo (gargalhada). –Mais de ladinho... Vem... –Pra onde a gente vai depois? –Caralho! Você arranhou minha barriga... –Ah, não morde, porra! –Vê se não deixa marca... Da última vez foi foda... –Os banqueiros estão cada vez mais satisfeitos... –Os empresários não param de gozar... –Hummmm... Que apertadinho... –Vem, vem, vem... Vamo, vamo, vamo...

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

BENS


Primeiro foram os celulares: eles saltaram das mãos, dos bolsos, das mesas ou de onde quer que estivessem e ficaram sobrevoando o mundo.  Depois, todos os automóveis e aviões, ao mesmo tempo, se desintegraram e suas peças voavam e se chocavam no espaço. O para-choque de um caminhão bateu no sino de uma igreja e, imediatamente, todos os sinos de todas as igrejas começaram a badalar. Em menos de uma hora de som ensurdecedor, os prédios também começaram a se desintegrar e tijolos e blocos de concreto passeavam pelo céu.
Ninguém se machucou, porém, as pessoas não conseguiam se ouvir e choravam de desespero, principalmente as crianças. Ver as cidades totalmente vazias era mais assustador do que ver o céu repleto de objetos voadores ou do que saber que não se teria onde morar. “Tanto tempo para construir isto tudo!”, pensou alguém. “Tanto dinheiro pra nada!”, falou outra pessoa sem ser ouvida nem por si mesma. “Poxa! Justo agora que passei no vestibular!” “E minhas aplicações no banco, como ficam?” “Vou perder o último capítulo da novela...” “Como vou trabalhar?” “Bem que um troço desses podia cair na cabeça de Fulano!”
Nada caía. Todos os objetos do mundo sobrevoavam as pessoas cada vez mais estupefatas pela impossibilidade de se comunicar. De início, ficaram paralisadas, pensando em seus bens. Depois, começaram a vagar pelos campos vazios que foram se formando. E foram percebendo que podiam passar por qualquer lugar, pois nada mais tinha dono. Isso foi lhes dando alguma resignação e até certa alegria. Estavam se vendo de uma forma que nunca nem tinham imaginado. E passaram a se abraçar, numa tentativa de substituir a falta de comunicação. E perceberam que o abraço era a melhor forma de comunicação. Estavam, agora, felizes!
Os objetos do céu foram sumindo, como que sugados por um buraco negro. O absurdo ruído desapareceu. As pessoas voltaram a se falar e ouvir. Não precisavam mais se abraçar. E o primeiro plano foi reconstruir tudo o que haviam perdido.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O ENGOLIDOR DE VERBOS


Começou na infância – não como uma brincadeira, mas como única forma de sobreviver. “Nascer” foi o primeiro verbo que engoliu; tinha um sabor agridoce; era bom e não era, tanto que, em dúvida, teve que engolir o verbo “chorar” logo em seguida. O verbo “respirar” desceu por sua garganta mais harmoniosamente e lhe acalmou; ficou viciado neste verbo, engolia-o a todo instante. E assim, foi engolindo outros verbos que apareciam. “Andar” e “falar” foram engolidos quase que por obrigação. “Sorrir” não lhe passava pela boca, muito menos pela garganta. Havia um buraco em seu estômago, que impedia a passagem deste verbo. Engoliu o verbo “brincar” meio sem vontade; faltava-lhe ânimo para digerir algo tão alegre. “Estudar” foi engolido somente pela metade, ou nem isso. Era preciso forçar muito a mastigação e ele desistiu. Teve que engolir o verbo “trabalhar” antes da hora. Passava-lhe pelo esôfago arrebentando-o – e assim foi para todo o sempre.
Certa vez, tentou experimentar o verbo “amar”. Da primeira vez que o digeriu, tinha um sabor maravilhoso, inexplicável. Mas, com o tempo, foi se tornando ácido. Não quis mais saber deste verbo, pois o “viver” já era por si só intragável; não precisava de complementos com temperos ásperos. Preferiu engolir seus verbos sozinho. “Sonhar”, “imaginar”, “cansar”, “adoecer”, “delirar”, “renascer” – todos estes verbos foram devidamente por ele engolidos.  Não engoliu muitos outros por simplesmente não conhecê-los. Há um, porém, que ele quer muito engolir logo, mas não o encontra nem pra remédio – é o verbo “morrer”. E ele vai teimosamente deglutindo seus verbos, pois jurou pra si mesmo que jamais sorveria o verbo “matar” – nem para consumo próprio.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

ELOGIO


Linda ela estranhou o elogio não que não o merecesse mas saiu às pressas sem pensar revelando apenas um desejo corpóreo Linda aliás era também seu nome ou melhor apelido seu nome mesmo era Gorolinda quem não riria de um nome assim lembrava gorila ela não conseguia entender de onde seus pais tiraram esse nome não conseguia entender muitas outras coisas como o povo só elege políticos aventureiros ou aventureiros políticos como as pessoas conseguiam se comunicar nas redes sociais sem o uso de pontuação bem mas tudo isto seria assunto para outra oportunidade ela agora está compenetrada naquele elogio que adivinhou seu nome ela usa outro nick ela odeia o uso de palavras estrangeiras ela usa o nick Xubidubidu que não revela seu sexo logo de cara ela gosta de confundir mas o elogio saiu sem que seu interlocutor tivesse visto sua foto sua foto nas redes sociais é a de um gatinho tomando leite soou falso mais que apenas corpóreo nem me viu e me acha linda vai cagar e mandou mesmo a pessoa ir cagar com todas as letras só esqueceu mesmo o ponto de exclamação que não faria diferença qualquer um entende um apelo assim mas a pessoa não foi cagar continuou a conversa perguntando primeiramente porque deveria ir cagar Linda explicou mas Linda isto não foi um elogio eu sei quem você é como você sabe quem sou você me falou seu nick para mim pessoalmente ih fudeu então tchau aqui eu só converso com estranhos mas eu sou estranho a gente só se viu uma vez se a gente se viu uma vez não somos mais estranhos ah então vai cagar também Linda já estava sentada no vaso há muitos minutos ficou aliviada porque cagou e porque aquilo não tinha sido um elogio

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

OS ÓRGÃOS


A paranoia se arrasta impiedosamente no caminhar da trabalhadora. Descer do ônibus lotado é mais que um alívio, é um renascimento. Entrar no prédio apenas amarrotada é uma vitória.
-Bom dia.
Sim, sem exclamação. É uma fala forçada. Às vezes, ela acha que é seu estômago que fala. E é seu útero que não ouve a resposta. Porque não houve resposta. Estão todos ocupados com sua imensa satisfação em ser egoístas. Às vezes, ela pensa que digita com os olhos. Basta mirar o teclado e as letras e os números surgirão apressadamente na tela do computador. Às vezes, ela não sabe se é ela que digita; se não é o computador que tenta lhe contar histórias. Ela não sabe mais porque digita. Para que. Como. Quando. Onde. Ela está meio perdida, trocando as funções de seus órgãos. Falar com as mãos. Acenar com o clitóris. Gozar pelo umbigo. Mastigar com os cílios. Respirar pela sola do pé. Disseram-lhe uma vez que ela precisava harmonizar os chacras. Ela sorriu balançando a cabeça negativamente e pensou: “Ah, se você soubesse o que é carregar um corpo...”
Ela digitou muito. Letras e números que não ganham sentido – nem com muita imaginação. Já é hora do almoço e ela não sabe qual órgão fará a refeição. Ela não está cansada; está suspensa no ar. Anda com as asas que não tem (e não se veja nenhuma liberdade nisso). Vê vitrines e ouve uma música que não sabe de onde vem (nem se vem). O colorido das lojas e o som se misturam numa indiferente sinestesia. Tanto lhe faz ouvir a cor ou ver as notas musicais. A paranoia continua (e continuará sempre) impiedosa.
Mais alguns milhões de dígitos e ela já pode ir embora. Mais um ônibus – mais acachapante que o da manhã. Mais um suave e inóspito arrastar-se até a casa. Onde ela pode trocar as funções de seus órgãos mais à vontade. E morrer mais um pouquinho. E tentar descobrir por qual órgão se morre...

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

INCONSTITUCIONALISSIMAMENTE


Inconstitucionalissimamente, eu te amo. Desde que decretaram a proibição do amor, meu amor por ti só aumentou. Duplicou. Triplicou. Quadruplicou. É, agora, uma progressão geométrica. Quanto mais insistem na valorização do ódio, mais eu te adoro. Quanto mais anunciam na imprensa que o ato de beijar será castigado, mais eu quero lamber teu corpo. Quanto mais fazem propaganda da tortura, mais desejo te abraçar e acariciar. Quanto mais nos negam o direito à alegria, mais pretendo pôr um sorriso em teus lábios – melhor, uma gargalhada. Tanto mais desmoralizam o toque, muito mais anseio pela tua presença. Tanto mais nos castram, mais te penetro. Quanto mais nos ceifam a esperança, mais te farei gozar.
Se o amor pode ser uma forma de rebeldia, amaremos aos gritos. Ensurdeceremos os déspotas com nossos gemidos e sussurros. Eu te amo. Mesmo que inconstitucionalissimamente, eu te amo. E proibido é muito mais gostoso!

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O ÍDOLO MORREU


O ídolo morreu. Levou consigo toda a verve da tribo. O cachimbo da paz, invenção dele, perdeu a simbologia esperada. Os cocares, outra das suas criações, todos se acinzentaram. Andar nu já não trazia conforto; sentiam frio. Não mais havia ânimo para pescar, caçar e cozer a própria alimentação. Todos emagreceram demasiadamente. O rio já não servia para nadar. O sol foi desprezado e a pele empalideceu. A única utilidade das tabas era esconder-se para lamentos profundos. Os homens perderam a libido e as mulheres, a fertilidade; a tribo envelheceu em pouco tempo. Velhos, cansados e tristes – e não notavam. Até a natureza se condoera e só fazia chover. O tempo escuro se misturava à depressão local.
Mas... Um pajé, um único pajé – talvez por influência do próprio ídolo morto – teve um lampejo e pôde perceber a apatia da tribo. Imediatamente, fez a dança para o sol voltar a brilhar. Daí, muitos já conseguiram abrir os olhos. O pajé conversou com eles, convencendo-os de que o ídolo certamente não gostaria de ver a tribo naquele estado. E uns foram conversando com outros até tudo voltar à normalidade. A tribo já pescava, caçava, nadava e tomava sol novamente. Fizeram uma grande festa em homenagem ao ídolo. E, em meio a danças e cânticos, o pajé do lampejo foi tido como o novo ídolo da tribo.
Um dia, o novo ídolo também morreu. Levou consigo toda a verve da tribo...