sexta-feira, 13 de março de 2020

CONTAMINADOS


Não adianta se desesperar. Não adianta correr. Não adianta tentar fugir. Todos já estamos contaminados. Não precisa se esconder em casa, encolher-se sob vários cobertores ou trancafiar-se no porão. Todos já estamos contaminados. Não carece lavar as mãos a cada segundo, tomar banho de álcool, vestir roupas de astronauta. Todos já estamos contaminados. Qualquer pandemia é mera brincadeirinha se a compararmos com todos os outros vírus que já possuímos. O vírus da covardia, o vírus do desamor, o vírus da falta de caráter. Todos já estamos contaminados. A doença da solidão escolhida, a doença da distância programada, a doença da não resposta ao bom dia. Todos já estamos contaminados. O mal de não respeitar o vizinho, o mal de criticar o afeto, o mal de rezar só por si. Todos já estamos contaminados. A síndrome do ódio, a síndrome do desprezo, a síndrome da violência. Todos já estamos contaminados. A moléstia do descaso, a moléstia do sarcasmo, a moléstia do desamparo. Todos já estamos contaminados.
Perdoem-me pela generalização. Mas, se não estamos contaminados por todos esses males, pelo menos um deles já nos atacou o coração. E continuamos a sobreviver. Portanto, mão tenhamos medo; não entremos em pânico; não recusemos uma mão estendida. A cura está na aproximação, não no isolamento. A cura – assim como a doença – está dentro de cada um de nós. Está em cada gesto benevolente. Está em cada sorriso, em cada palavra de conforto. Todos já estamos contaminados, mas nossa cura sempre está e estará no ar.

quarta-feira, 11 de março de 2020

O ABRAÇO


Um abraço tem o poder de aproximar mundos diferentes, de fundir culturas desiguais, de reestruturar corpos disformes e regenerar espíritos atrasados. O abraço é a maneira mais estreita e justa de ser humano; o modo mais caloroso de estar e sentir-se vivo – e de dar vida. Abrir os braços para alguém é abrir também a mente para dar e receber energia. Negar-se a um abraço é – mais do que rejeitar o outro – negar-se a si próprio. Chegar ao cúmulo de criticar ou maldizer um abraço, então, é tirar todo o sentido da vida e demonstrar, inequívoca e evidentemente, que está precisando demais de um abraço. O mundo precisa de aproximação, não de muros. Que tal construirmos o humanamente abstrato?

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

ANJO


Desde que um anjo pegou minha mão, eu fiquei assim, mais leve. Era uma senhora de mais de setenta anos, pegando restos de alimento no lixo do prédio da prefeitura. Dizia que, mesmo azeda, a comida era muito boa. E se punha a imaginar um prato fumegante, com um apetitoso cheiro de ervas finas. Depois que eu lhe disse “bom dia”, ela passou a me contar histórias de sua infância e juventude. Que naquele tempo é que era bom! Havia fartura em todas as mesas e todos, todos mesmo, podiam se servir à vontade. Havia música e dança até de madrugada e todos, todos mesmo, dançavam com respeito. E quem queria uma carícia mais ousada se retirava da festa e se escondia no matagal. Ela ficou em dúvida se gostava mais da festa ou do matagal. Namorador, um anjo namorador. Que se encantava com as primeiras luzes de mercúrio. Que achava lindos aqueles pequenos pontos luminosos substituindo o brilho das estrelas na escuridão da noite. Mas que atrapalhavam o namoro encostado ao poste ou no banco da praça. “Ah! Namorar era muito bom! Hoje, quem abraçaria uma velha fedida como eu? Que arrota lixo azedo e se esconde nos becos para fazer suas necessidades... Envelhecer é isso? A vida sem abraços é muito triste, menino! Comer lixo é suportável...” Olhei-a nos olhos; ela lembrava minha mãe. Lembraria a mãe de qualquer pessoa. “Posso te dar um abraço, com todo respeito?” Ela riu. “Você vai sair daqui com catinga, menino. Faz isso, não...” Aproximei-me dela e dei-lhe o abraço. Ela me apertou forte. Realmente, parecia precisar mais de um abraço do que de comida. Quando nos desvencilhamos, ela pegou minha mão. “Agora vá cuidar dos seus afazeres, menino! Não perca mais tempo com esta velha louca, não... A vida passa depressa, sabe? Reze e trabalhe muito para não chegar nesta situação... Namorei tanto que me esqueci de rezar, de trabalhar... Mas a vida é assim... Se eu estivesse dentro de minha casa ou num asilo, não teria ganhado este abraço. Vai com Deus!” E eu fui. Com Deus, certamente, mas principalmente com as marcas do abraço de um anjo em meu corpo. Leve.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

TÁ ME TIRANDO?


Cara-pálida tá me tirando? Aqui é Cacique! Com C maiúsculo! Pensa o quê? Que aqui é palerma? Índio aqui estudou. Estudou muito. Autodidata! Li mais livros do que sua família inteira junta! Foi-se o tempo, aliás, muito, mas muito tempo mesmo, que índio trocava sua dignidade por espelhinho. Agora você vem me oferecer um celular? Tá me tirando de idiota? Pra que eu quero falar com alguém do outro lado do mundo, se não conheço ninguém lá? Ah, ele também tira fotos? Índio não precisa ver fotografia; índio vê tudo ao natural. Faz chamada por vídeo? Índio conversa olho no olho. Tem lanterna? Índio só caça de dia; à noite a gente aproveita a luz do luar. Dá acesso às redes sociais? Cara-pálida, socializar é estar junto, de mão dada, dançando festivamente ou guerreando, se necessário. Sabe o que você faz com esse aparelhinho? Troca por comida e ajuda a matar a fome do seu povo. Esse povo, sim, está trocando sua vida por espelhinhos. E espelhinhos quebrados, que não servem para nada. Sabe o que você pode fazer também com este celular? Liga a câmera dele. Olhe-se bem nos seus próprios olhos e se pergunte: o que estou fazendo de minha vida? Não pare de olhar até achar uma resposta humanamente positiva. E me deixe em paz. Tá me tirando?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

PRONUNCIAMENTO


-Atenção para o toque de cinco segundos para o pronunciamento de Vossa Excelência, o Presidente da República das Bananas Podres.
-Oito... Sete... Seis... Cinco... Quatro... Três... Dois... Um!
-Bananeiros e bananeiras, boa noite! É com grata sastifação que venho lhis comunicar qui, a partir de amanhã, imtrepe... impreve... im-pre-te-ri-vel-men-te, ...xi! O teleprompi apagou! Que merda é essa? Vê isso aí, porra! (...) Ah, voltou! Então, a partir de amanhã, imtrepe... impreve... (Caramba! Já falei pra não colocar esta porcaria de palavra nos discurso!) Im-pre-te-ri-vel-men-te, todos os cidadãos deverão trabalhar 18 horas por dia, com o direito de cinco minutos para o almoço. Parece muito? Não é não! Deixei cinco minutos para dar tempo de escovar os dentes. Todos entenderão que esta medida foi estreitamente necessária para o crescimento do país e a valorização do trabalho pelas famílias cristãs. Devo acrescentar que tal medida abrange todas as pessoas acima de sete anos. E só estão dispensadas de cumpri-la aqueles que já bateram as botas, como se diz lá na minha cidade. Pra quem não sabe, bater as botas é o mesmo que morrer, fechar o paletó, encomendar a alma, escafeder-se. Com a prena certeza de que me fiz craro e todos apoiarão mais esta medida, afinal, é para o bem de todos, me despeço. Bananeiros e bananeiras, boa noite!

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

HPV

Apareceu algo estranho na glande do rei. Algo como um caroço, um pequenino tumor. O urologista real foi chamado e, em segundos, deu o diagnóstico:
-Não é nada grave, Majestade. É um simples HPV. Desaparecerá com algumas compressas de água morna. Mas cuide bem, Majestade! Estas coisas simples podem se transformar em doenças malignas...
Um enfermeiro palaciano foi encarregado de fazer tais compressas. O rapaz, ao saber que veria e tocaria parte tão íntima do rei, ficou apreensivo, mas foi cumprir o seu dever. Após ajudar a majestade a tirar tanta roupa suntuosa de cima do minúsculo pênis real, ele não conseguiu conter o riso. “Tem menos da metade do tamanho do meu”, pensou e, involuntariamente, já gargalhava, como se a anatomia respeitasse títulos de nobreza. O rei, furioso com tal audácia, imediatamente ordenou:
-Soldados!  Cortem-lhe a cabeça! Agora!
O capitão tentou contemporizar:
-Majestade! Não estás sendo cruel por demais?
-Não, não estou! Cortem-lhe a cabeça! Do pênis! Aliás, cortem-lhe o pênis inteiro!
A ordem foi cumprida. O enfermeiro, envergonhado, suicidou-se. E o caroço da glande do rei, esquecido propositalmente por ele mesmo, cresceu absurdamente e tornou-se um maligno câncer. O pênis real teve que ser amputado. No mesmo dia, o urologista real foi condenado à morte.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

SURUBA


–Teus lábios me dão um tesão danado! –Tuas coxas são demais! –Uau!!! Você raspou! –Mas eu já comi tua bunda agora mesmo... –(Sussurrando) Você me deixa maluco... –Vamos todos juntos? Agora! –Desliga essa câmera, porra! –O dólar tá subindo mais do que meu pau... –A gente podia variar... Sei lá... Brincar de roda... –“Sexo é uma selva de epiléticos”. –Você e suas (ex)citações fora de hora. –Caiu mais um ministro... Caiu bem em cima da cabeça do meu pau! (risada) –A coisa pública é excitante... –Queria transar dentro de um cofre... –Você já transou em cabine telefônica? –(Gemendo) Esta cueca é de matar! –Eu queria mesmo era foder com a vida do povo (gargalhada). –Mais de ladinho... Vem... –Pra onde a gente vai depois? –Caralho! Você arranhou minha barriga... –Ah, não morde, porra! –Vê se não deixa marca... Da última vez foi foda... –Os banqueiros estão cada vez mais satisfeitos... –Os empresários não param de gozar... –Hummmm... Que apertadinho... –Vem, vem, vem... Vamo, vamo, vamo...