A
paranoia se arrasta impiedosamente no caminhar da trabalhadora. Descer do
ônibus lotado é mais que um alívio, é um renascimento. Entrar no prédio apenas
amarrotada é uma vitória.
-Bom
dia.
Sim,
sem exclamação. É uma fala forçada. Às vezes, ela acha que é seu estômago que
fala. E é seu útero que não ouve a resposta. Porque não houve resposta. Estão
todos ocupados com sua imensa satisfação em ser egoístas. Às vezes, ela pensa
que digita com os olhos. Basta mirar o teclado e as letras e os números surgirão
apressadamente na tela do computador. Às vezes, ela não sabe se é ela que
digita; se não é o computador que tenta lhe contar histórias. Ela não sabe mais
porque digita. Para que. Como. Quando. Onde. Ela está meio perdida, trocando as
funções de seus órgãos. Falar com as mãos. Acenar com o clitóris. Gozar pelo
umbigo. Mastigar com os cílios. Respirar pela sola do pé. Disseram-lhe uma vez
que ela precisava harmonizar os chacras. Ela sorriu balançando a cabeça
negativamente e pensou: “Ah, se você soubesse o que é carregar um corpo...”
Ela
digitou muito. Letras e números que não ganham sentido – nem com muita
imaginação. Já é hora do almoço e ela não sabe qual órgão fará a refeição. Ela
não está cansada; está suspensa no ar. Anda com as asas que não tem (e não se
veja nenhuma liberdade nisso). Vê vitrines e ouve uma música que não sabe de
onde vem (nem se vem). O colorido das lojas e o som se misturam numa
indiferente sinestesia. Tanto lhe faz ouvir a cor ou ver as notas musicais. A
paranoia continua (e continuará sempre) impiedosa.
Mais
alguns milhões de dígitos e ela já pode ir embora. Mais um ônibus – mais
acachapante que o da manhã. Mais um suave e inóspito arrastar-se até a casa.
Onde ela pode trocar as funções de seus órgãos mais à vontade. E morrer mais um
pouquinho. E tentar descobrir por qual órgão se morre...
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