quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

OS ÓRGÃOS


A paranoia se arrasta impiedosamente no caminhar da trabalhadora. Descer do ônibus lotado é mais que um alívio, é um renascimento. Entrar no prédio apenas amarrotada é uma vitória.
-Bom dia.
Sim, sem exclamação. É uma fala forçada. Às vezes, ela acha que é seu estômago que fala. E é seu útero que não ouve a resposta. Porque não houve resposta. Estão todos ocupados com sua imensa satisfação em ser egoístas. Às vezes, ela pensa que digita com os olhos. Basta mirar o teclado e as letras e os números surgirão apressadamente na tela do computador. Às vezes, ela não sabe se é ela que digita; se não é o computador que tenta lhe contar histórias. Ela não sabe mais porque digita. Para que. Como. Quando. Onde. Ela está meio perdida, trocando as funções de seus órgãos. Falar com as mãos. Acenar com o clitóris. Gozar pelo umbigo. Mastigar com os cílios. Respirar pela sola do pé. Disseram-lhe uma vez que ela precisava harmonizar os chacras. Ela sorriu balançando a cabeça negativamente e pensou: “Ah, se você soubesse o que é carregar um corpo...”
Ela digitou muito. Letras e números que não ganham sentido – nem com muita imaginação. Já é hora do almoço e ela não sabe qual órgão fará a refeição. Ela não está cansada; está suspensa no ar. Anda com as asas que não tem (e não se veja nenhuma liberdade nisso). Vê vitrines e ouve uma música que não sabe de onde vem (nem se vem). O colorido das lojas e o som se misturam numa indiferente sinestesia. Tanto lhe faz ouvir a cor ou ver as notas musicais. A paranoia continua (e continuará sempre) impiedosa.
Mais alguns milhões de dígitos e ela já pode ir embora. Mais um ônibus – mais acachapante que o da manhã. Mais um suave e inóspito arrastar-se até a casa. Onde ela pode trocar as funções de seus órgãos mais à vontade. E morrer mais um pouquinho. E tentar descobrir por qual órgão se morre...

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