quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

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Serafim morreu. Sua esposa Júlia, seus dois filhos, Mário e Fernanda, e Vanda, a empregada da família, velavam o corpo. Vanda cuidava para que as velas não se apagassem, as flores não murchassem e não faltasse café aos tão poucos presentes. Júlia não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Começou a chorar quando colocaram o corpo ali e não parou mais. Mário e Fernanda, jovens pouco acima dos vinte anos, normalmente já não se falavam; naquela situação, então, o silêncio era imperativo – era quase uma ordem do falecido.
Aproveitando que Vanda teve que mexer no interior do caixão para rearranjar uma flor que o vento derrubara, Serafim ergueu-se e sentou-se. Tirou os chumaços de algodão do nariz e pôs-se a falar.
-Fiquem tranquilos! Eu estou morto, sim. Esta é a última vez que vou perturbar vocês. Não queria ir-me daqui sem lhes dizer algumas palavrinhas.
Todos se espantaram. Júlia, arregalando os olhos, parou de soluçar. Mário e Fernanda entreolharam-se aflitos e permaneceram calados.
-Não quero deixá-los sem esclarecer algumas pendências. Não quero que passem o resto da vida imaginando coisas a meu respeito que talvez não condigam com a realidade...
O morto faz uma pausa, tira o algodão de um dos ouvidos e continua.
-Mário!
O rapaz se levanta num salto.
-Então eu sou um velho imprestável, não é mesmo? Mas e minha conta-corrente? Ela é muito útil, não?
Mário olha para o chão, envergonhado. O velho grita o nome da filha, que se levanta sem sobressalto.
-É verdade, Fernanda, que eu deveria me envergonhar por ser tão ranzinza, só por querer ver você ser alguém na vida?
A moça torce o nariz e senta-se novamente. O morto chama pelo nome da esposa.
-Bem, Júlia, agora você não precisa mais se constranger para me trair de todas as maneiras possíveis. Fique à vontade!
Júlia volta a chorar. Serafim ia deitando-se novamente, mas detém-se.
-Ah! Anotem para a posteridade as minhas últimas palavras: algodão no nariz é um pé no saco!
Finalmente deita-se e cruza as mãos, como bem cabe a um falecido. Júlia e seus filhos quebram o silêncio, gritando em uníssono para Vanda:
-Filha da puta!

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