quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

LAPSOS

Lapsos de memória frequentes levaram Jair a procurar um médico. Depois de cinco remarcações da consulta, ele se lembrou de ir ao consultório.
Na sala de espera, um vaso enorme esparramava uma planta desconhecida para ele.
O médico o chama. Já esquecera a planta. O doutor parecia nervoso. Tinha um tique na boca. Jair ficou incomodado. Se nada valesse a pena, pelo menos a secretária era gostosa. Jair observara suas pernas por debaixo da mesa. Mas já não se lembrava delas.
O médico tinha dificuldades em falar. “O problema é mais grave do que imaginei”, pensou Jair. Antes que o doutor terminasse a primeira frase, o paciente levantou-se da cadeira almofadada e agradeceu a atenção do profissional, saindo pela porta entreaberta. Lembrou-se da secretária e de suas pernas. Mas não tinha mais razões para ficar ali.
Chegou à porta do elevador. Não lembrava quais das setas devia apertar. Já não lembrava também o que tinha vindo fazer naquele prédio. Resolver ir pelas escadas. Treze andares.
Ao chegar à porta do prédio, um homem lhe perguntou pela localização de uma rua. “Não lembro”, respondeu. E foi em frente. Não lembrava também que condução tomar para ir para casa. Aliás, nem sabia se queria ir para casa. Pensou em procurar um médico. Parou num bar e pediu uma cerveja. O balconista o olhava desconfiado. “Vai comer alguma coisa?” Não, ele não sabia se queria comer. Até tinha fome. Mas não lembrava o nome do salgado na vitrine que lhe apetecia. Não queria passar vergonha; disse simplesmente “não”.
Acabou a cerveja e decidiu caminhar. “A pé não me perco”. Parou numa praça e perguntou-se porque estava meio tonto. Sentou-se no único banco ali. Já não lembrava que ia caminhar. Começou a cantarolar uma canção antiga. Não chegou ao terceiro verso. Ficou olhando os pombos e as pessoas. Comparava-os. Mas ao chegar à segunda frase do raciocínio, já tinha esquecido a relação que estabelecera na primeira. Milho. Hu-milho. Só isso vinha à sua mente.
Levantou-se. Olhou para o céu e acompanhou uma nuvem com o olhar até ela se juntar a outra. Parecia que ia chover. Desde manhã parecia que ia chover. E ele, claro, esqueceu o guarda-chuva. Onde?
Passou um rapaz vendendo capa de chuva. “É só dez! É só dez!”. Jair pegou uma capa, deu uma nota de cem e retomou a caminhada sem esperar pelo troco. Chegou à porta do prédio do consultório médico. O homem que procurava por uma rua ainda estava lá, perguntando a todos que passavam. Jair já não se lembrava do homem. E, interpelado, de novo respondeu “não lembro”.
Jair olhou para cima, mirando o prédio de ponta a ponta. Parecia-lhe familiar. Decidiu entrar. Antes que chegasse à porta do elevador, o médico vinha ao seu encontro. Ia dizer algo, mas Jair o interrompeu. “Não lembro!” E entrou no elevador. Não sabia que número apertar. Ficaria ali até que entrasse outra pessoa e apertasse algum botão. Entrou uma mulher muito elegante e bonita. “Boa tarde!”, disse ela chacoalhando a sombrinha e apertando o número sete. “Não lembro!”.
-Não lembra o quê?
-Não lembro!
-Como assim?
-Como posso dizer o que não lembro se não me lembro?
-Eu só disse boa tarde.
-Sim, mas não lembro o que devo dizer depois disto.
-Oras. Boa tarde!
-Novamente? Desculpe-me, mas não lembro...
Chegou o sétimo andar e a mulher desceu sem se despedir. Não saberia como explicar ao desconhecido que ele apenas deveria dizer “tchau”. Jair ficou olhando para o chão do elevador, observando os respingos de sua capa e os da sombrinha da mulher se fundir. Formavam um desenho. Mas que desenho era aquele? Um cavalo? Um castelo? Um homem? Não sabia...
Entrou um homem no elevador. Vestia terno preto e cartola. Jair olhava fixamente para o objeto que o homem trazia à cabeça. Queria buscar dentro de sua mente onde já tinha vista algo muito semelhante. “No circo? No teatro? Na festa do meu casamento? Eu sou casado? Com quem? Onde está minha mulher que não me ajuda? Aliás, eu tenho parentes? Onde moram? Onde estão?” O homem ia saindo do elevador quando Jair arrancou-lhe a cartola.
-O que se passa, meu senhor?
-Eu preciso disto! Eu preciso disto!
-Eu poderia lhe presentear, mas preciso dela na cerimônia de que vou participar em minutos...
-Isto é a chave de tudo! De tudo!
-Não o entendo, meu senhor. Poderia devolver a minha cartola?
-Cartola?... Não me lembro...
E devolveu o objeto ao seu dono. O homem saiu achando tudo muito estranho, mas sem censurar Jair, que agora se obstinava pela palavra ‘cerimônia’. “O que é isso mesmo?” Decidiu sair do elevador para tentar achar alguma pista. Três andares acima do do homem da cartola. Encontrou um salão enorme com muitos bebês; a maioria deles engatinhando. Jair juntou-se a eles. Uma das babás não notadas por ele ligou para a portaria do prédio e chamou por segurança. Em segundos, chegaram dois homens altos, vestidos de preto, com rádio na cintura fazendo muito barulho. Enquanto um levantava Jair, o outro lhe perguntou se estava tudo bem. “Não lembro!”
Um dos homens acompanhou Jair até a portaria do prédio. Perguntou-lhe se precisava de alguma coisa. “Eu preciso saber se sou casado...” O segurança ficou surpreso.
-O senhor tem documentos?
-Não lembro...
-Vejo uma carteira no seu bolso... Quer que eu verifique?
Jair confiou-lhe a carteira.
-Pelo que leio aqui, o senhor é solteiro...
-Solteiro? Então não tive festa de casamento? Não usei cartola?
-Como?
Percebendo o confuso estado do rapaz, o segurança contemporizou:
-O senhor está precisando de ajuda? Sabe como chegar à sua casa?
-Não lembro se tenho casa...
-Você tem aqui uma conta de luz... Rua dos Pombos, 237. Isto lhe diz alguma coisa?
-Pombos... Pombos saindo da cartola... Aquele mágico numa cerimônia... Que cerimônia mesmo?
O segurança estava por perder a paciência, mas resistiu, pois percebeu que não se tratava de uma má pessoa e, sim, de alguém no mínimo confuso.
-Se o senhor quiser posso pedir permissão à chefia para acompanhá-lo até este endereço. Não é muito longe daqui.
-Permissão... Chefia... Endereço... Você está me deixando confuso. Eu vou embora!
O segurança chegou a pensar em não deixá-lo ir, mas não poderia se responsabilizar por alguém que nem conhecia. Devolveu-lhe a carteira e mostrou a porta da saída. Jair se foi.
O homem que procurava uma rua parou Jair novamente. “Por favor, senhor, pode me dizer onde fica a Rua dos Pombos?”
-Eu me lembro! Eu me lembro! Pombos saindo da cartola. Foi contratado um mágico para animar a cerimônia de casamento de minha irmã mais velha...
-E a rua?
-Rua? Não foi na rua! O senhor está querendo me confundir! Foi num salão... No salão da igreja...
-Sim! É na igreja mesmo que quero ir! O senhor sabe onde fica?
-Vou para lá agora! Acho que a festa ainda não acabou!
-Posso acompanhá-lo? Preciso chegar lá antes do anoitecer...
-Não se preocupe! A festa vai até o sol raiar!
-Festa? Mas eu vou ao velório do Padre Inácio!
-O padre morreu? Quem vai casar minha irmã? Sem cerimônia, não haverá mágico, nem pombo, nem cartola...
-Oras! Não vou mais com você! Você é louco!
-Louco? Não lembro...
Jair pôs-se a caminhar novamente, em direção contrária à que foi outrora. Já não chovia; tirou a capa de chuva e amarrou-a a um poste. Não se lembrava porque estava vestindo aquilo. Pegou a carteira do bolso e remexeu os mesmos papeis que o segurança tinha lido há pouco. “Jair de Souza da Silva... Sim, sou eu! Rua dos Pombos, 237... Não me lembro... Estado civil: solteiro... Sim, é minha irmã quem vai casar, não eu... Oitenta e cinco reais e quarenta e sete centavos... Não lembro... Comprovante de votação... Que votação? Nacionalidade: brasileira. Número do hidrômetro. Natural de Mirassol-SP. Conta corrente número 456.367-2. Filiação: Maria Eugênia da Silva e José Ferreira da Silva. Agora me lembro! Papai morreu à véspera do casamento! Estava dando uma carona pro Padre Inácio... E mamãe? Onde está mamãe? Talvez aquele homem saiba...”
Jair voltou mais uma vez à porta do edifício do médico. Lá estava o homem procurando a Rua dos Pombos. Antes que ele dissesse qualquer coisa, Jair mostra-lhe o RG.
-Você conhece esta mulher?
-Mulher? Mas é um homem! É você mesmo!
-Não! Aqui! Maria Eugênia da Silva...
-Não conheço, não. Só conheço o Padre Inácio... Vim para o velório dele...
-E o velório dele é nesta Rua dos Pombos, não é mesmo?
-Isso!
-Então vou ajudar você...
Ficaram os dois perguntando a todos os transeuntes onde ficava a Rua dos Pombos. Por anos. Os seguranças do edifício tentavam ajudá-los a se dirigir a tão procurado endereço, mas desistiam quando eles começavam a falar de um certo casamento e um tal velório.

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