quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O CRÂNIO

Labaredas perseguem um crânio que foge da luz. E à velocidade da luz. Faíscas entram-lhe pelas cavidades que já foram olhos, boca, nariz. Queimam-lhe o vazio antes ocupado pelo cérebro. O crânio, de tantas faíscas, torna-se uma lâmpada. Acesa. O crânio finge-se símbolo de boa ideia. E não há ideias; sequer más ideias. Há um vazio cercado de osso queimando que voa por um espaço multicolorido, que também se finge. De mar, de céu, de terra, de plumagem, de pelos, de quadros pintados por ilustres ou anônimos. O crânio para por um momento. As labaredas ultrapassam-no. Parecem perder-se no multicolorido, misturando-se a ele.
Agora o crânio finge observar o dissimulado espaço colorido. Finge – não há olhos.
As faíscas já não o iluminam mais. Agora, finge-se de boa ideia apagada. Pensa, finge pensar que poderá encontrar conforto no espaço. O conforto para um crânio é um corpo onde repousar - também finge pensar. Talvez, voasse por ali um esqueleto sem cabeça, necessitado de um crânio que finge pensar. Ou simplesmente de um crânio para ser completo.
O crânio volta a se mover. À velocidade da chama de uma vela. Sente, finge sentir tocar-lhe o cocuruto penas suaves, grama arrancada com restos de terra, algodão usado em feridas dos que ainda vivem. Percebe, finge perceber que observar em menor velocidade é mais colorido. E encontra ioiôs, conjuntos de canetas hidrocoloridas, caixas de lápis de cor, latas de lixo próprias para reciclagem, tecidos estampados de rosas, margaridas, girassóis. Tenta, finge tentar montar um corpo – um esqueleto – com estes objetos.
Todo o colorido do espaço, repentinamente, desaparece.
Agora, o crânio finge não precisar de um corpo. Mesmo porque não tem mais os objetos para a montagem. Quer, finge querer ouvir música – afinal, há as cavidades que já foram ouvidos. Uma voz de uma cantora negra, norte-americana, acompanhada por um guitarrista acéfalo, à frente de um leão gigante, que se diverte com a cabeça de um palhaço amontoada sobre livros. O crânio quer achar um tesouro. Pelo menos uma moeda gigante como o leão. E depois, subir uma escada suja e chegar à voz da cantora novamente. O crânio finge querer fingir desejar.
E o multicolorido reaparece. Desenha no espaço marrom nádegas e bocas lambuzadas de azeite. O crânio pressente, finge pressentir que está sendo vigiado. Por corpos – inteiros: osso e carne – masculinos e femininos. Alguns, armados de martelo. Há ânsia. Uma dissimulada ânsia. Uma inventada vontade de amar. Nos corpos, não no crânio. E ele se finge voyeur.
Finge disfarçar-se de corpo inteiro, para também (fingir) vigiar. O disfarce, porém, não restou perfeito. A cabeça é canina, num corpo humano. E voltam as margaridas, as rosas, os girassóis. Não mais estampados. Inteiramente presentes. Surgem pratos pintados à mão que se assemelham a discos voadores. Quebráveis óvnis encaracolando-se, rocambolescamente, e espatifando-se contra a parede de prédios sisudos.
O crânio finge fugir. Querer fugir. Para. Esconde a canina cabeça entre os restos da barriga recém-fingida. Um navio passa sorrateiramente ao seu lado. Uma mão enorme achata-lhe o resto do corpo-disfarce. E não há mais como disfarçar. Nem fingir disfarçar.
O crânio sente-se apenas tutano. Um creme. De folhas verdes. De queijo. A lambuzar – ou fingir lambuzar – novas nádegas. Inteiras. Gelatinosas. Firmes. Bonitas. Sensuais. Gratas por serem lambuzadas. Satisfeitas. Insatisfeitas, pois querem mais. Outra mão surge. Fálica. Para acabar com a brincadeira. Ou começar outra.
O crânio se extasia. Finge ter dentro da cavidade da boca uma outra boca. De tigre. Com uma extensa língua a surrar o ar. Das cavidades dos olhos, surgem lágrimas negras. Um quase-petróleo. Combustível para gritar. E finge gritar. E finge sentir calor. Finge ser mulher. Finge tomar sorvete enquanto afaga um cão. Finge ter outro corpo para tomar banho. De calda de sorvete. Finge mais outro corpo – de golfinho, a mordiscar uma pétala de rosa.
De tanto fingir ter corpos, o crânio se transforma em um ovo. E finge preocupar-se. Cadê as cavidades? Ora!, a casca do ovo se quebra facilmente. Têm-se infinitas possibilidades de cavidades. Fácil. Como mergulhar dormindo e acordar desembocando no corpo de um pássaro enorme.
O crânio explode. E fim. Fim amarelado. Inclusive do espaço multicolorido.

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